sexta-feira, 5 de dezembro de 2014



O KIMCHI DE MICHELLE OBAMA 


Por Thiago Minami



Passava um pouco da meia-noite em Seul. Eu rolava na cama sem sono, atormentado por uma implacável fome noturna. Se estivesse num hotel, pediria algo por telefone. Mas era o apartamento de um amigo coreano no subúrbio da cidade, onde ele vivia só com a mãe. Eu pensava sem parar na geladeira. Segundo minha imaginação, ela deveria estar cheia de sobras deliciosas de comida coreana. 

O amigo já dormia e a mãe dele tinha saído para uma noitada (família não-convencional). Hipnotizado pela imagem da geladeira, fui à cozinha em absoluto silêncio e puxei dois potes transparentes que deixavam à mostra o vermelho intenso, saboroso da culinária coreana. No jantar, comemos um decepcionante arroz frito chinês – a mãe preparara uma montanha daquilo recorrendo ao estereótipo de que estrangeiro não aguenta a pimenta local. Como não falávamos a mesma língua, nem tive chance de me defender.

Abri o primeiro pote. Guardava ojingeo-bokkeum (fala-se odingobokum), um refogado de lula com pimenta, shoyu e cebolinha, por sinal um dos meus pratos coreanos favoritos. Coloquei no micro-ondas e, um minuto depois, o cheiro já transformava aquela meia-noite em meio-dia. Dei a primeira mordida. Parecia lava borbulhante. Era pimenta demais, mas estava tão bom que era impossível parar. Lembrou-me uma cena marcante do romance coreano Cidade de Brinquedo, em que o moleque protagonista, morto de fome após chegar do interior, faz sua primeira refeição na Seul devastada pela guerra. É arroz feito com água suja, e ele devora tudo mesmo assim.

O outro pote, menor, tinha uma porção de conserva de acelga, o kimchi (fala-se kimti). Era o que eu procurava. Queria provar a receita da mãe do meu amigo – na Coreia, cada família tem a sua própria. Aquela, por exemplo, tinha gosto mais forte de alho e pimenta que as outras. Durante a semana toda em Seul, não passei uma única refeição sem provar um kimchi diferente. 



É a paixão nacional. Cerca de 95% dos coreanos consomem essa conserva apimentada de vegetais pelo menos uma vez ao dia. Desses, 65% o fazem em três refeições, incluindo o desjejum matinal, diz o órgão que administra o patrimônio cultural do país. A preparação da conserva, feita tradicionalmente antes do inverno, é tão importante que foi tombada pela Unesco.

Existem mais ou menos cem tipos de kimchi, que podem ser feitos com pepino, nabo, alho e frutos do mar, entre outros ingredientes. O mais famoso é o de acelga. Foi esse que conquistou a primeira-dama dos Estados Unidos, Michelle Obama. Recentemente, ela confessou na internet que adora kimchi e publicou sua receita pessoal da especialidade, preparada com alimentos da horta da Casa Branca.


Foto Wikipedia Commons

O prato está se disseminando por lá, a ponto de já figurar em pizzas e hot dogs. É de se estranhar, no entanto, que uma conserva de sabor intenso – azedo, salgado, apimentado – e cheiro controverso faça sucesso na terra do insosso. A razão pode estar na saúde. Os cientistas coreanos sustentam que as bactérias responsáveis pela fermentação do kimti – as mesmas do iogurte – ajudam a prevenir o organismo humano contra microrganismos, a processar a glicose, a acelerar o metabolismo e a manter o peso. 

Mas não sejamos hipócritas nos nossos prazeres, lembrando Camus. Kimchi faz bem porque é delicioso. Entretanto, podemos compará-lo à cerveja: dificilmente cai-se de amores no primeiro encontro. Assim que se aprende a gostar, porém, dá vontade de conhecer mais e mais. Foi o que me levou ao Museu do Kimchi, em Seul. Lá aprendi que o original era feito só com sal. Foi no século 18 que entrou a pimenta vermelha – originária do Novo Mundo – e gerou a receita atual, que também incorpora alho, gengibre, cebolinha e molho de peixe fermentado. 

A mistura fermenta por dias ou semanas. O cheiro forte faz com que muitos coreanos mantenham uma geladeira separada só para guardar o alimento. A sabedoria antiga preferia usar potes gigantes que ficavam embaixo da terra. Paradoxalmente, enquanto cresce no exterior, o consumo de kimchi diminui na Coreia. Os jovens revelam mais apreço pelos pratos estrangeiros. Meu anfitrião coreano, então com 19 anos, adorava spaghetti alla carbonara. O governo luta contra. Recentemente, criou o World Institute of Kimchi, destinado a desenvolver variações adaptadas aos paladares divergentes e do exterior. Os Estados Unidos já estão nessa. E, caso se repita o fenômeno do sushi, que chegou ao Brasil via Califórnia na década de 80, pode ser que em breve tenhamos kimchi de couve mineira. Será?

Quem quiser visitar o Museu do Kimchi em Seul precisa esperá-lo reabrir em novo local até o final do ano. No Brasil, qualquer restaurante coreano serve a conserva. Em São Paulo, pode ser adquirido na Mercearia O&G (Rua Três Rios, 245, Bom Retiro, tel.: (11) 3326-1419). Já os mercados japoneses vendem uma versão mais amena do que a original, às vezes chamada de tyosen-zuke. Parece-se com o kimchi coreano, mas não é a mesma coisa.

Aprenda a fazer o kimchi de Michelle Obama em RECEITAS DAS CRÔNICAS.

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